quarta-feira, 1 de junho de 2011

Piano

Acordei pela insistência, atendo sem abrir os olhos e sou surpreendido com - "aposto que te acordei... sai da cama! duche e desces que tou aqui em baixo parada à tua espera... e é bom que te despaches ou começo a tocar à campainha de tua casa e acordo-te a casa toda...

Contrariado, revoltado, sonolento e lavadinho, sento-me ao seu lado no seu carro.

- Foste correr? - pergunto-lhe, ela responde-me que sim e arranca sem que eu tivesse tempo para por o cinto - não sabes que quando estou a dormir, e eu estava a dorm...

- É sagrado eu sei, sei que a esta hora, pelas horas a que foste dormir ontem, a Madame só podia estar a dormir... sim sei, e? apeteceu-me, apeteceste-me, há problema? U mad?

- Y U no let me sleep?

- Seco, olha Endra, de tua casa à Cidade Universitária? cinco minutos "al dente", tinhas mais uma hora de sono se tivesse ido a casa passar-me por água e te apanhasse depois mas... tinha que andar para trás e para a frente e daqui a pouco... tu conheces a Praça de Espanha a esta hora...

- Continuo sem perceber o teu plano.

- Eu tomo um duche rápido, tu esperas por mim na sala e é só descermos, práctico e eficaz.

- Não era mais fácil combinarmos uma situação em que eu ia ter contigo...

- E tu saías da cama? POUPA-ME!!

Esperneio, esconjuro-a, revolto-me em indignação... e ela sorri.

Cabra.

Atiro-me para o puff sem estilo, classe ou ergonomia.

- Não fui eu que te ofereci esta coisa? pergunto-lhe quando a vejo atravessar de tolha na mão do quarto para a casa de banho.

- Sim, e foste tu que o rasgaste duas vezes... e ele tem uma mancha na parte que está para baixo que não sai... que também foste tu que fizeste e ainda não percebi nestes anos todos o que é... enfim, clássico André, a manchar-me coisas desde 1981.

Ingrata.

Acha que é fácil, acha que é qualquer um que atinge um patamar e...

...e desde quando é que ela tem um piano na sala?

Empurro o puff para me levantar primeiro com as mãos- que se afundam - e depois com as costas.
Empurro com as mãos e com as costas e estico o pescoço e continuo no mesmo sítio.
Isto começa a ser ridículo...

Estico as pernas, rebolo para o lado e ...vitória! estou livre, que deus! sou buéda esperto...

(suspiro-me em vergonha)

Sempre gostei de pianos de parede.

Sento-me e levanto o tampo.
Passeio os dedos sobre as teclas e concentro-me na Valsa dos Detectives dos GNR. Fico momentaneamente orgulhoso com o resultado.
Arrisco a #41 da Dave Matthews band, só um cheirinho e tenho o Ego a pedir colinho que já está cansado e hoje foi um dia em cheio.
Oiço a água parar de correr e salto do piano para o sofá como se tivesse feito uma asneira.

Vejo-a aparecer de vestido preto, vejo-a corar quando me diz- " são mais 30 segundos que me esqueci de vestir uma coisa..."

Eu respondo que já está vestida, ela devolve-me que o bikini tem duas peças e ela só vestiu a de cima.

Eu fico a remoer o assunto, ela sabe que fiquei bloqueado na ideia quando volta e num tom ostensivamente forçado me pergunta- está tudo bem? estás pronto?
Chamo-a com o indicador e com o mesmo aponto para o sofá, para se sentar ao meu lado.

Mantendo a personagem, concentradíssima no papel de jovem púdica quase por estrear, senta-se na ponta do sofá ao meu lado, suave e delicada, joelhos juntos e mãos uma sobre a outra sobre os mesmos. Fita-me de baixo para cima pestanejando rápido e exageradamente.

- Sim? o que me queres Ru-ru... ou Dé? preferes que te chame Dé-dé? o que achas mais fofo?

Suspiro-a em ódio. Gesticulo duas a três vezes sem conseguir dizer o que quer que fosse.

- Vais à praia?

- Tu é que tens que trabalhar meu querido, aqui eu... vou passear o corpinho pá costa! - diz e aproxima o indicador do meu nariz, saltando com a mão para trás depois de lhe tocar.

Nunca percebi a graça de tanta gente diferente, países e continentes vários, culturas e religiões... um movimento de universal comunhão do ser humano que se diverte em esfregar na minha cara que andam a passear enquanto eu estou a trabalhar.
Não tem piada nenhuma - nunca me ri.

Aponto para o piano.

- O que foi? ah, foi uma prenda da minha mãe quando voltei, tu sabes como é que ela é comigo...

- Eu gosto, fica bem na tua sala, pena não saberes tocar... continuas a tocar guitarra? se calhar é melhor irmos que já tou com uma larica...

Levanto-me e avanço para a mesa, pego na carteira e outros pertences.

- Então? não vens? a ideia de irmos ao pequeno almoço foi tua...

Vejo-a olhar para mim e depois para o piano e depois novamente para mim.
Depreendo que se encontre a ruminar uma ideia, morde o lábio e eu já sei... its ooooon baby, its on!

Levanta-se, ajeita o vestido e fita-me de lado.

Em passos pequenos vence a distância do sofá ao piano e levanta o tampo do mesmo - que eu tive o cuidado de fechar, deixar provas ou vestígios que me incriminassem depois era muita maçarico.

- Sabes... - diz-me e toca uma escala - eu em Barcelona - pressiona dramática três vezes e recupera a ligeireza suave dos dedos - fiquei a morar com mais pessoas, uma das quais era uma Checa, ias gostar dela, loira alta... falava imenso... - nesta altura não reconheço o que toca - quer dizer, menos na parte de falar imenso apesar de não perceberes o que dizia, o que já não era nada mau... enfim, adiante, ela por sorte, estava a estudar música... dava aulas para fazer dinheiro e tocava harpa, piano e mais uma catrafada de coisas... eu disse-lhe que sabia tocar guitarra - reconheço a 4 to 20 da Joss Stone e sento-me ao lado dela diante do piano - quer dizer, achava eu que sabia tocar...
Estive três anos em Barcelona, dois dos quais vivi com ela... they say time... wait for no men... and neeeeeither doest the woooooo-man... confesso que não sou croma, aprendi a ler pautas com uma certa facilidade e quando gosto da música tento decorar para a tocar quando me apetece... o que te apetece ouvir? pode ser que saiba...

- Run for the hills... Iron maiden...

- Estúpido - desengonçou a melodia até parar dando um efeito dramático ao estúpido. gostei.

- Atão? mostra-me o que sabes! surpreende-me!

- Mais do que tenho feito? - inclina o corpo para mim e beija-me rápida no rosto...

- "You and me we're goin' nowhere slowly... And we've gotta get away from the past - oh mon dieu!... - There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby...But we should be goin' nowhere fast"- e eu lembro-me de numa terça feira lhe dizer que bom mesmo era estar na praia e rapidamente fugirmos do bar da faculdade e zarparmos para a costa... para apanharmos duas horas de pára arranca e a música bombar na rádio connosco parados em pleno tabuleiro da ponte... epic fail.

- Agora a parte que tu gostas.. And I don't know where I ever got the bright idea that I was cool... So alone and independent - e eu canto com ela como uma pita histérica nos bons ( ???) velhos tempos do... whispers (tou velho) - But I'm depending on you now... And you'll always be the only thing that I just can't be without... And I'm out for you tonight...I'm comin' out for you tonight... eh pá isto é tão creepy!!! estás satisfeito? - abranda o ritmo e altera a melodia para the shape of things to come - esta foi a última música que me mostraste antes de eu ter o meu mega ataque e deixar de falar contigo na véspera de me ir embora... acho que foi a segunda música completa que aprendi a tocar.

- Qual foi a primeira?

- Não digo! tenho vergonha...

- Vá lá! qual é o problema? e desde quando é que tu tens vergonha comigo?

- É a que te apanhei uma vez a cantar no banho quando ficamos a dormir na casa da...

- SLEEEEEEEEEEEEEEEEPING IN MY CAR... I WILL UNDRESS YOOOOOOOOOOOOOOOOU...



Nota - o momento alto do texto é a referência ao mítico Whispers.
Fez-me sentir para lá de velho, ancião.

Sim, a Sleeping in my car é a música que canto no banho.

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