quinta-feira, 15 de maio de 2008

Fumo

Podia ser apenas um momento estranho, desconfortável como tantos outros. Rodeado pelo fumo no espaço escuro, pelos contornos sem rosto e de voz ténue.
não se lembrava do que bebia nem quando levava aos lábios o copo, mas isso não lhe era importante.
Percorria o olhar pelo copo sem o fixar, não concentrava a atenção no que quer que fosse fazia algum tempo. como se a mente adormecida se tivesse sentado num limbo qualquer distante e o corpo continuasse em piloto automático.
Acabou o que tinha no copo e pediu outro igual. Os dias acabam mas o momento continua sem cessar, e era um estado continuo já há algum tempo.
demasiado.
Seja como for, sentia-se menos mau do que antes. o frio e um pouco de chuva prendaram-no no exterior levando-o a fechar o blusão. o antes fora demasiado... visceral para dele se lembrar de bom grado, ou não sentir o alivio de apesar de vazio ser... tranquilo.
estava atrasado. Estava quase sempre atrasado, mesmo quando chegava antes do tempo era sempre depois do que previra chegar. sublinhou a nota mental em comprar um relógio.
achava-a uma gaja porreira, senão mesmo uma tipa altamente. era comum presentea-lo com um sorriso, seja debaixo de um bombardeamento de artilharia ou durante uma largada de touros.
Sentia por ela qualquer coisa primitivamente magnética... ou animalesca, mas era mais que vontade de cruzar e perpetuar os genes. gostava da personalidade dela. do ser conceptual dela, o que era uma situação inédita na história da humanidade, e como uma primeira vez, estava totalmente perdido na relação, era tudo de improviso e isso assustava-o.

- Cheiras a tabaco... tiveste com a outra?
- se a outra for o café ao pé do atelier... sim...
- ainda não namoramos e já me andas a trair?
sorriu e beijou-o no rosto, demorou-se como sempre o que o levava a exasperar pela proximidade do corpo dela, pelo cheiro delicioso, o cabelo que fugia e suavemente tocava na sua pele... sentia o impulso de a segurar e beijar como se a não extinção do mosquito equatorial disso dependesse.
- gosto dessa camisa... - disse deslizando com a mão pelo peito dele, puxando-o atrás de si- como está a chover acho má ideia ficarmos cá fora não achas? entramos?
acenou-lhe positivamente.
aguardaram a indicação da mesa, sentaram-se.
- temos que conversar, e já que estás sentado e já pedimos... já não foges...
- ainda nem começamos a namorar e já temos que conversar...
- piada... adiante, temos que conversar porque... tu és um gajo teimoso e tens uma barreira qualquer de fumo entre nós, está lá e não me deixa ver para alem dela senão uma ténue imagem... e odeio essa merda, portanto diz-me de uma vez que porcaria é que se passa contigo que já à umas semanas que começo a ficar irritada...
- ah... fumo?
- era metafórico... tens uma cortina de água... um cortinado de berloques do talho... preferes assim?
- gosto desses cortinados... tinha pensado...
- não comeces a fazer piadas que depois não paras - apertou-lhe a mão com intensidade sem a largar
- não te estou a perceber...
- olha... tens qualquer coisa que te atrofia a e não me dizes, algo que te deixa... com esse olhar como quem está noutro sitio qualquer...
- posso não o querer partilhar...
- podes, mas isso só iria querer dizer que tenho razão e há realmente qualquer coisa...
- não necessariamente, mas caso houvesse alguma coisa podia não a querer partilhar...
- tens mesmo a certeza que é isso que queres fazer - apertou-lhe a mão com maior intensidade
- eh pá... isto parece um interrogatório...
- chama-lhe o que quiseres... não sais daqui sem me dizeres o que se passa...
suspirou, olhou-a nos olhos e desbroncou-se.


Levou aos lábios o copo, sabia bem o que bebia, ginger- ale, em seu redor pela fraca luz continuava rodeado de contornos sem rosto... num espaço sem fumo que agora havia uma lei do tabaco... o que para sua pena retirava uma certa atmosfera clandestina ao lugar.
pediu outra ginger-ale, sentia a mente fresca, limpa como nos dias em que acordava cedo para ir correr para a praia e ao pé do mar era cercado por gangs de gaivotas ruidosas.
saiu do café e olhou para o relógio, de pele castanha, estava adiantado mas apressou o passo na mesma.
tinha perdido tanto tempo a escorregar num chão molhado sem cair, sem sair do sitio e a patinhar tudo à sua volta.
Chovia a espaços, e viu-a sem chapéu descer a rua na sua direcção
- chegaste cedo estúpido - puxou-o para si e beijou-o demorada nos lábios.
- ena, tanta alegria por me veres...
- cala-te - beijou-o novamente.
entraram e sentaram-se.
segurou-o pela mão e sorriu. apertou-lhe a mão ate receber de resposta um sorriso...
- faz hoje um ano...
- realmente... nunca mais senti dor ou qualquer actividade muscular na mão esquerda...
- ah sim? - ameaçou-o com um garfo sobre a mão que não largou - não devias fazer piadas idiotas comigo... já devias ter aprendido isso...
- e se não fizesse como te conquistava? sem a minha imitação de um koala alcolizado? sem a minha imitação do Dino Meira sob efeito de Marijuana...
- tinha muito melhor impressão de ti e levava-te mais vezes a minha casa... mas vamos ao que interessa...nós temos que falar...
- merda... outra vez!?!
- é mais ou menos sobre o mesmo... afinal nunca me explicaste e mudou tudo... tu mudaste... já não anda a neblina... os berloques... e eu não percebi... ajuda-me a perceber...
- se é porque não te conto tudo é porque te escondo... se te escondo é porque não confio, se te conto tudo e fica tudo bem é porque aconteceu alguma coisa... decide-te.
- já decidi... em fazer a tua vida num inferno até me contares...
- olhar que massada...
- num inferno asexuado... - sorriu maliciosamente
- foda-se.


- Falar é bom, desintoxica, materializa exteriormente o que está dentro de nós às voltas... e organiza essa mesma coisa para a conseguirmos explicar, depois de o fazermos, de falarmos, ela torna-se algo exterior e relativo a nós - como algo que contamos ou fizemos no passado.
depois disso temos a oportunidade de a deixarmos ficar nesse sitio - não perdendo a importância- ou a carregarmos connosco.
alguém que nos é importante e podemos desintoxicar essa situação... que não nos julga pelas coisas que achamos estúpidas - e até partilha a fantasia com um pónei, manteiga magra e um kinder surpresa- a partir dai é lucro.

ah... e tiveram sexo a seguir ao jantar...

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Pestana

Nada do que diga ou escreva consegue de algum modo transmitir o vazio que fica.
Por melhor que trabalhasse ou moldasse as palavras elas nunca conseguiriam fazer jus à dimensão, tão grande e tão tamanha que a pequena criatura cravou durante os seus dias, os nosso dias.
perdi-lhes o rasto... aos anos longos que fui presenteado com a mais alucinante e respeitável membro do sexo feminino que existiu para conhecer.
Haverá algum consolo de a ter sentido aninhada no meu regaço? o seu respirar tranquilo como não estivera até eu chegar, o acalmar gradual até a sentir partir de mim...
Custava-me olhar para os seus olhos, como se todas as luzes estivessem desligadas menos uma ténue ao canto da sala, custava-me aceitar que assim fosse.
14 anos.

Im only this far
And only tomorrow leads my way

Im coming waltzing back and moving into your head
Please, I wouldnt pass this by
I would take any more than
What sort of man goes by
I will bring water
Why wont you ever be glad
It melts into wonder
I came in praying for you
Why wont you run
In the rain and play
Let the tears splash all over you...


è como se chorasse à chuva Pestana.
Ciau